ilustrações de Antonio Paim Vieira.

Fonte: Linha do Tempo do Design Gráfico do Brasil, org. Chico Homem de Melo e Elaine Ramos. Cosac&Naify, SP 2012

 

*para mais informações sobre o artista Antonio Paim Vieira: 

http://antoniopaimvieira.blogspot.com.br/

 

Antonio Paim Vieira: um pioneiro.

 

Ana Maria de Niemeyer

Ruth Sprung Tarasantchi

 

 

Antonio Paim Vieira (1895-1988) foi artista e estudioso da natureza e da população brasileira. Ao pintar as árvores do mural alegórico representando 44 espécies nativas do Estado de São Paulo - situado no Museu Florestal Otávio Vecchi em São Paulo- teve uma iniciativa inédita. Ele pediu ajuda de índios. Foram eles que lhe ensinaram o tamanho delas relacionadas umas com as outras. Ele tinha as folhas e pedaços de tronco, mas não sabia como eram na floresta.

 

É provável que esses índios tenham sido falantes de tupi-guarani de São Paulo. Esse interesse de Paim pelos índios é coerente com sua preocupação constante em colocar os animais, as plantas e o povo do Brasil em suas obras de cerâmica, gravura, pintura e ilustração. Ele foi pioneiro na busca de uma representação sintética de elementos de nossa fauna e flora; na cerâmica, inspirou-se muitas vezes na arqueologia marajoara.

 

Um exemplo que alia a poética do artista aos seus estudos, à sua religiosidade e ao seu nacionalismo, é a decoração da Igreja Nossa Senhora do Brasil em São Paulo. Paim trabalhou nesta igreja entre 1947 e 1970. Ao pintar o afresco do teto da Capela Mor desta igreja, ele estudou a disposição das estrelas no céu à época do nascimento de Jesus em Belém, reproduzindo-a com fidelidade. Ladeando a parte central, onde está Nossa Senhora com fisionomia de cabocla estão homens, mulheres, às vezes crianças e velhos, inclusive índios, das diversas regiões do Brasil, cada um com seus tipos físicos característicos e roupas locais, cercados por árvores, plantas e animais representativos de cada localidade. Em último plano, ele colocou paisagens símbolos dessas regiões.

 

Antonio Paim Vieira dizia que usava cores vivas porque a luz brasileira tornava todos os tons mais intensos e brilhantes. Essa foi mais uma de suas contribuições à arte brasileira da época.

 

 

São Paulo, 12 de julho de 2013.

 

 

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A primeira Terra (*)

(*)Yvy tenonde, A primeira Terra. Canto sagrado dos Mbyá-Guarani do Guiará.

In: Josely Vianna Baptista, Roça Barroca. São Paulo, Cosac Naify, 2011: 43-57. 

 

Primeira parte

 

O verdadeiro Pai Ñamandu, o primeiro,

seu leito na Terra para si mesmo concebendo,

com o saber contido em seu ser-de-céu,

e sob o sol de seu lume criador,

fez com que da ponta de seu cetro

fosse surgindo a Terra.

 

Uma palmeira azul criou no futuro centro da Terra;

outra na morada de Karaí;

uma palmeira azul na morada de Tupã;

na fonte dos bons sopros da Terra, uma palmeira azul;

criou cinco palmeiras azuis:

a morada na Terra está atada a essas palmeiras eternas.

 

Existem sete céus;

o céu se assenta sobre esteios:

seus esteios são cetros.

O céu que se estende com os ventos

Nosso Pai empurrou, mandou embora.

 

Primeiro colocou três esteios no céu,

E o céu ainda oscilava.

Por isso,

fincou-lhe quatro esteios-cetros,

e ele ficou no lugar certo,

sem se mover.

 

Quem primeiro sujou o leito terreno

foi a serpente do começo;

agora em nossa Terra só resta seu reflexo:

a verdadeira vive fora

do céu de Nosso Pai.

 

No leito terreno de Nosso Pai

o primeiro canto,

o primeiro lamento,

foi da yrypa, a pequena cigarra vermelha.

 

A cigarra vermelha do começo

está fora do céu de Nosso Pai:

agora em nossa Terra

só sua sombra resta.

 

O yamai

por muito tempo fez as águas.

O que mora hoje em nossa Terra

não é mais o verdadeiro,

o verdadeiro está fora do céu de Nosso Pai:

agora em nossa Terra

só resta seu reflexo

 

Quando Nosso Pai fez a Terra,

tudo era mata:

não existiam campos.

Por isso,

para que fosse elaborando prados

fez vir o tucura.

No lugar em que o tucura fincou

as patas traseiras

foram brotando brenhas de biurás

e só então despontaram os prados.

E no campo tiniram,

tilintaram os sons do tucura

comemorando.

O tucura originário

está fora do céu de Nosso Pai:

só sobrou sua sombra.

 

Quando o sol iluminou o prado,

os primeiros sons que se ouviram,

quem primeiro se alegrou

foi o inhambu vermelho.

O inhambu vermelho

-seu pio o primitivo som no prado –

agora está fora do céu de Nosso Pai:

hoje no leito terreno

só resta seu reflexo.

 

Quem primeiro feriu a Terra na morada de Nosso Pai

foi o tatu.

Não é mais o tatu verdadeiro

que existe agora em nossa Terra:

esse não passa de um espectro.

 

O nume do escuro é o murucutu.

E Nosso Pai, o Sol, lume da aurora.

 

 

Segunda parte

 

Nosso primeiro Pai, antes de adentrar no céu profundo,

assim falou:

“Só tu, Karaí, pai verdadeiro,

farás com que teus filhos,

os Karaí de Grande Coração,

guardem a fileira de labaredas

em que me inspiro.

Assim,

nomeia-os ‘Karaí senhores das labaredas’.

Para que guardem o crepitar das labaredas,

a cada primavera faz que avivem

as fileiras de labaredas,

a fim de que os adornados com o cocar de plumas

e as adornadas com flores nos cabelos,

escutem, sempre, o crepitar das labaredas”.

 

E disse então

ao verdadeiro Pai Jakaira:

“Pois bem, tu irás cuidar da neblina

que está na fonte das palavras inspiradas.

Faz com que teus filhos guardem o que, a sós, criei,

Jakaira de Grande Coração.

Assim, nomeia-os:

‘senhores da neblina das palavras inspiradas’,

diz”.

 

E depois,

disse ao verdadeiro Pai Tupã:

“Tu cuidarás do mar

e de todos os ramos do mar.

Farei com que te ergas inspirando

as leis que irão refrescar o firmamento.

Assim,

por meio de teus filhos, os Tupã de Grande Coração,

leva sempre à morada terrena a fonte do frescor

para nossos filhos queridos,

para nossas filhas queridas”.

 

O verdadeiro Pai Ñamandu, o primeiro,

prestes a estender o bom saber sobre a Terra

e sobre a fronte dos adornados com o cocar de plumas,

e sobre a fronte das adornadas com flores nos cabelos,

disse ao verdadeiro Pai Jakaira:

 

“Sim, primeiro farás descer

a neblina sobre a fronte de nossos filhos,

de nossas filhas.

A cada primavera leva a neblina vivificante,

por meio de teus filhos, os Jakaira de Grande Coração,

ao leito terreno.

Só isso fará possível

a sorte de nossos filhos

e filhas ser favorável”.

 

Depois disso,

Karaí, pai verdadeiro,

farás com que o fogo sagrado

encontre abrigo

em nossos filhos queridos,

em nossas filhas queridas”.

 

“E por isso, Tupã, meu filho, pai verdadeiro,

do granizo e da chuva guardarás o frescor

no âmago do coração de nossos filhos.

Só assim

na vida dos que irão se erguer no leito terreno,

mesmo dos que não querem conviver com amor,

haverá temperança.

 

Pois com a vinda dessa névoa fria

nossas filhas queridas,

nossos queridos filhos vindouros,

irão conviver nos termos do amor

sem sofrer os excessos do calor”.

 

Ñamandu, pai verdadeiro, o primeiro,

depois de nomear cada um dos verdadeiros pais de

                                             [seus filhos vindouros,

e cada um dos verdadeiros pais das palavras-almas

                                           [de seus filhos vindouros,

todos a sós em seus lugares certos, falou:

“Agora,

depois de nomeá-los,

todos a sós em seus lugares certos,

da conduta dos adornados com o cocar de plumas,

da conduta das adornadas com flores nos cabelos,

vós, por vós mesmos, ireis saber”.

 

E por fim,

segredou o canto sagrado aos verdadeiros pais primeiros,

segredou o canto sagrado às verdadeiras mães primeiras,

para que os amanhãs

colhessem, vivendo e bem,

os muitos filhos eleitos para erguer-se no leito terreno.

     

 

 

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